ColunistasCOLUNISTAS

Pedro Fagundes de Borba

Autor: Pedro Fagundes de Borba

Relação deles

21/6/2020 - Várzea Paulista - SP

  Relacionamentos, por envolverem o denso mundo afetivo, com todas suas características e desejos, sempre viram assunto, sempre interessam e sempre revelam algo sobre as pessoas, fazem surgir algo. Cada pessoa envolvida em algum relacionamento, tem suas características e sente desejo de se envolver com outra, se misturar a ela, senti-lá, muitas vezes sem sequer conhecer exatamente o porquê e acaba muitas vezes descobrindo características novas e entendendo coisas que não sabia sobre fatos e acontecimentos diversos. Um dos mais conhecidos e aclamados contos de Anton Tchekhov, dramaturgo e contista russo, “A senhora com o cachorrinho” trata deste tema, fazendo como ninguém o descrito, as nuanças, veredas, desejos e motivações por detrás de relacionamentos.

Dmitri Dmitritch Gurov observava, no passeio a beira mar, uma jovem senhora passeando com um cachorrinho, loura mediana, com um lulu da Pomerânia branco. A encontrou algumas vezes também no parque municipal e na praça, algumas vezes por dia. Ela passeava sempre sozinha, ninguém sabia quem era lá em Yalta. Então, não faria mal em conhecê-la.

  Dmitri não tinha ainda quarenta anos, mas tinha já uma filha de 12 e dois filhos ginasianos.Casaram-no cedo, quando ainda no segundo ano universitário, a mulher agora vez e meia parecia mais velha do que ele. Ela era alta, de sobrancelhas escuras, empertigada, compenetrada, séria e, assim se definia, intelectualizada e lia muito. Ele, secretamente, a considerava medíocre, limitada e deselegante, tendo-lhe medo, não gostando muito de ficar em casa.

   Há muito tempo a enganava, com frequência, provavelmente por isso se referia mal às mulheres, quando falava delas se referindo como “raça inferior”. Sentia-se suficientemente escolado pela amargura para se referir a elas da maneira que quisesse, mas não conseguia passar dois dias sem a “raça inferior”. Se sentia mais livre com elas, sabia o que falar, se entediando na companhia dos homens. Em sua aparência, caráter e natureza havia sutil que atraía as mulheres. Ele sabia e sentia uma força estranha, que o atraía para elas.

   Quando almoçava no parque, viu que a senhorita sentara na mesa ao lado, reparando que era de boa sociedade, casada, estava na cidade pela primeira vez, se entediando. Se lembrou de conquistas fáceis, daquelas criadas por pessoas que pecariam se soubessem como, e a ideia de um rápida e fulgoz ligação com uma mulher desconhecida se apossaram dele.

   Chamou o cachorrinho, que lhe rosnou e tentou pegar o dedo, ele o ameaçando na segunda vez. Ele não morde, falou ela. Perguntou se podia dar um osso. Ela afirmou com a cabeça e ele perguntou em tom afável se havia chegado há muito tempo na cidade. Cinco dias, respondeu. Foram fazendo conversa a partir deste ponto, deste assunto. Almoçaram calados e saíram juntos. Conversas leves. Descobriu que se chamava Ana Serguêivna, casada em S, passaria um mês em Yalta e o marido viria buscá-la.

  Ficou pensando nela ainda mais tarde, no quarto de hotel, imaginando que ela ia se encontrar com ele no outro dia. Lembrou quanta timidez, quanta falta de jeito havia em sua conversa com um desconhecido. Devia ser sua primeira vez naquela situação. E havia, mesmo assim, algo de dar pena nela, pensou; e dormiu.

  Passou uma semana. Estavam em um hotel. O dia quente, ele passava trazendo água com xarope de frutas ou sorvete. Passeram. Dmitri se lembrou das mulheres com que já se envolvera. Ana lhe dava uma sensação incômoda e embaraçosa, ela reagindo a isto de maneira esquisita, como se fosse sua própria queda. Disse que agora ele era o primeiro a não respeitá-la, ela tendo a pureza de mulher ingênua, decente e de pouca vivência. Ele quis saber porque estaria desrespeitando. Que Deus perdoasse, aquilo era terrível, disse ela. Retrucou que ela parecia estar se justificando.

  Ela falou que era muito ruim, estava enganando a si mesma. Já enganava o marido há um tempo. Não sabia o que o marido fazia, apenas que era um lacaio. Quando casou com ele, aos vinte anos, esperava mais, viver um pouco, uma outra vida. Era impossível conter-se, então disse ao marido estar doente e foi para lá, onde ficou andando.

  Dmitri se entediava com isso, o tom ingênuo o irritava. Quis saber o que ela queria. Uma vida limpa, respondeu. O pecado a repugnava. O diabo a confundira. Depois a alegria voltou, começaram a rir. Então saíram e, num coche de aluguel, foram para Oreanda. Sentaram em um banco próximo a uma igreja, parados. Yalta nem parecia. O ruído que sempre existiu continuava. Talvez o segredo fosse apenas apreciar a vida com a indiferença da vida e da morte, numa ininterrupta perfeição. Voltaram depois para a cidade. Continuaram passeando ao longo dos dias, cada um sentindo a história à sua maneira. Esperavam a chegada do marido de Ana. Mas ela recebeu dele uma carta dizendo que estava com dores nos olhos e implorava para que voltasse logo para casa. Voltou.

  Quando Dmitri foi para casa, em Moscou, mergulhou de volta na vida moscovita. Mas, pouco depois, Serguêivna voltou a aparecer em sua mente. Sentindo, acabou contando para um amigo, funcionário público. Achou seus próprios hábitos banais, desinteressantes. Passou mal vários dias. Em dezembro foi para São Petersburgo, com vontade de encontrar Ana Serguêivna.

  Lá foi para a casa do rico Von Dideritz, o marido. Não estava em casa, a que tinha uma grande cerca cinza. Ouvia piano de lá, devia ser Ana. Após a porta da frente ser aberta, saiu uma velhinha e o conhecido lulu branco. Quis chamá-lo mas, com a emoção, esqueceu o nome do cão. Voltou para o apartamento, odiando cada vez mais a cerca, vendo que Ana o esquecera, talvez até se divertindo com outro, natural para mulher da idade dela.

  Quis ir até o teatro, pensando que talvez fosse para as estreias. A viu na terceira fila, ela sendo o ente mais importante. Um homem, provavelmente o marido, sentou do lado dela. No intervalo, este saiu para fumar. Dmitri foi falar com ela. O viu e empalideceu. Ela saiu. Foi seguindo. Pararam na escada, que dava para a saída do anfiteatro. Quis ela saber por que viera. Não parara de pensar nele, mas porque viera? Tentou beijá-la. Ela o afastou. O procuraria em Moscou, mas ele tinha de sair. Afirmou que nunca fora, não era e nunca seria feliz.

  E foi. Realizavam encontros secretos em Moscou de tempos em tempos. Numa vez, ela chorava, achando que tomaram um rumo muito ruim. Para ele, não acabaria tão cedo. Ela cada vez mais o adorava. Se aproximou e lhe segurou pelos ombros para fazer um agrado quando se viu refletido no espelho. A cabeça começara a encanecer. Tinha envelhecido muito nos últimos anos. Parecia se apegar aquela vida que estava perdendo o frescor. Mas por que ela o amava? As outras por projetarem nele um homem que não existia, sentirem muito ele, não encontrarem outro e se apegarem a ele mais ainda. Mas Ana? Se amavam como pessoas muito próximas. Era como se fossem aves capturadas, obrigados a viver em jaulas separadas. Ficaram conversando sobre suas vidas. E perceberam que faltava pouco para tomarem uma decisão e começar uma vida nova, maravilhosa. E também que estavam muito longe do fim, e que o mais complicado e difícil estava apenas começando.

  Ambos chegaram aonde não imaginavam, contrariando o que conheciam de seus jeitos, desejos e hábitos. Sentiram de maneira mais forte do que procuravam e estavam acostumados. Talvez por essa surpresa mutua se apegaram, viram sentimentos mais profundos, não apenas sensações de aventura e transgressão. A relação mostra sinais de algo interno não imaginado, mas ali manifestado. E viveram. Não sabem como irão para a frente. Especialmente, sabem que não encararam o mais difícil ainda. Relacionados com o desconhecido com o sentido, desejos e vontades que ainda não foram vivenciados, vendo agora. Viram o ocorrer, ocorrendo junto. E não sabem o que farão com o outro.

 

 

                                        

Compartilhe no Whatsapp