Autor: Pedro Fagundes de Borba
A morte é um tema bastante complexo e capaz de gerar uma ampla gama de possibilidades literárias, talvez por seu caráter de evento definitivo, algo que marca definitivamente, constitui algo verdadeiramente misterioso. O que, literariamente, leva para inúmeros caminhos, faz com que todos os conhecimentos sejam desafiados, permitindo aos escritores especular muito. Um dos grandes gênios brasileiros, Machado de Assis, focou numa visão da vida vista com a morte ocorrida em sua obra prima, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, uma obra extraordinária para a especulação do vivo e do conhecido. No entanto, falarei agora de um conto do naturalista francês Émile Zola, “A morte de Olivier Bécaille”, em que, com seu pleno realismo, mostra uma morte viva.
Após três dias de enfermidade, Olivier Bécaille morreu no sábado. A mulher estava remexendo na mala havia alguns instantes, procurando roupa de cama. Vendo-o, achando que era um desmaio, acorreu tocando-lhe as mãos, inclinando sobre seu rosto. Foi então tomada pelo terror; transtornada, gaguejou em lágrimas que estava morto, morto.
Ouvia, mas os sons pareciam vir de muito longe. Então aquele estado singular era a morte? Imaginava uma noite mais escura, um silêncio mais pesado. Desde pequeno, tinha medo de morrer. Lembrava dos instantes mais felizes com sua esposa Marguerite, que conhecia e à seus pais desde sua infância, depois ficara com ela. Na época pensava quem iria primeiro, ela ou ele. Qualquer lhe enterneciam as lágrimas. Por isso, nas melhores épocas de sua vida, era atravessado por melancolias súbitas, que ninguém compreendia.
Assim refletia enquanto ela continuava a soluçar. Dava muito dó não saber como acalmá-la, dizendo que não estava sofrendo. Morrera naquele catre de hotel mobiliado na rua Dauphine em Paris, após terem abandonado sua província, muito pobres. O aguardavam para a segunda feira seguinte para sua administração, após ter administrado um hospital onde vivia. Imaginava que iria acordar.
Marguerite gritando, a porta foi aberta, uma voz quis saber o que estava acontecendo. Uma crise, não era? Era da senhora Gabin, uma idosa que morava no mesmo andar que eles. Era muito prestativa desde a chegada deles. Assustada, quis saber se ele tinha ido. Tocou nele, ficou com dó, consolou Marguerite. Disse que não era para morrer de desespero.
Adèle, Dédé, a filha de dez anos de Gabin entrou no quarto. Fora entregar dinheiro e informar sobre os abajures. Gabin falou para calar a boca, pela situação. Perguntou se ele dormia. Gabin confirmou, mandou ir brincar. A menina não saiu. Então fugiu derrubando uma cadeira, percebendo que estava morto. Marguerite parara de chorar.
Gabin comentou que teriam de fazer as formalidades, e quis chamar o senhor Simeneau. Marguerite não respondeu. Olivier não gostou. Ela o trouxe. Marguerite voltou a chorar. Simeneau decidiu passar na prefeitura e encomendar o féretro. Ficara para as onze, comentou também depois com Gabin. Ficaram todos no quarto. Olivier imaginava e abominava a ideia de que Simeneau passasse os lábios nos cabelos de Marguerite enquanto ela dormia, pois suspeitava que ele gostasse dela. O médico chegou, fez alguns comentários sobre a morte. Olivier odiou sua visão de cumprir sua formalidade, ficou com medo de não acordar, ser enterrado vivo. Não mexia um músculo do corpo.
Ouvia eles e outros sons na manhã seguinte, esperando conseguir acordar. Trouxeram o ataúde. Gabin comentou mal humoradamente que estavam chegando cedo demais. Achava que talvez fossem então umas nove horas. Teve uma suprema alegria quando sentiu Marguerite o vestindo com uma ternura de irmã e esposa. Simeneau disse que estavam lá embaixo. Gabin perguntou por que não subiam aqueles homens, ele tinha medo do desespero daquela mulher. Ela disse para levá-la à força para o quarto. Com esforço, foi levada. Em desespero. Estavam preparando o caixão.
Foi colocado lá, com travesseiro, o caixão foi fechado. Os sons chegaram mais abafados. Levaram-no embora, a sensação de estar balançando em um mar cheio de ondas. Foi sentindo o caminho.
Foi tirado então, percebeu. Sentiu sendo mergulhado; cordas roçando os cantos do caixão. Era o fim. Sentiu dois choques terríveis o atingirem. E desmaiou.
Não sabia quando tempo ficou assim. De repente, foi voltando à consciência de ser. Continuava dormindo, mas continuou a sonhar. Teve uma imagem onde ele, Marguerite e outros passageiros estavam; para então soltar um tão forte grito que sentiu ecoando fora. Assustou-se. Então podia andar e gritar que estava vivo, e ninguém o escutaria, debaixo daquela terra. Fez um esforço supremo para se acalmar e refletir. Haveria algum modo de sair dali. O cérebro ainda não funcionava muito bem.
O primeiro perigo pareceu ser o sufocamento, agora que os pulmões voltaram a funcionar. E o frio. Sentiu que estava na vala de concessão por cinco anos, ou seja, ao contrário da vala comum, estava a muitos palmos de profundidade.
Manobrando, foi tentando achar caminhos, sempre tendo acessos de loucura, dor e desesperança. Usando um prego e as costas, conseguiu fazer um entalhe. Então a tampa arrebentou. Pretendia usá-la como escudo e também escavar um poço na argila. Alguns desmoronamentos já lhe dobravam a espinha. O medo voltava a tomar conta. Bateu com vigor os calcanhares, calculando que poderia ali haver uma fossa que estavam escavando.
Os pés se enfiaram no vazio, havia ali uma fossa recém aberta. Só tinha de atravessar uma fina divisória para lá. Estava salvo. Por um instante, ficou de costas, era noite. Estava salvo, respirava, estava aquecido e chorava, balbuciava. Como era bom viver.
Saltou para fora. Estava no controle da situação, podendo assustar. Foi para um canto com árvores, no lado para onde ia Paris. Conseguiu sair, caindo do muro. Tinha febre e delirava na situação.
Permaneceu três semanas inconsciente, tendo acordado em um quarto desconhecido. Um homem lhe cuidava, dizendo tê-lo recolhido no boulevard Montparnasse. Queria estudar seu caso. Ficou mais oito dias acamado. Não pode perguntar nada, não foi questionado.
No verão, conseguiu autorização para sair. Perguntou onde era a Rua Dauphine, foi para lá. Um medo infantil lhe agitava. Entrou no restaurante do prédio de antes, estava irreconhecível pela barba, vendo à senhora Gabin. Conversaram sobre a decisão da mocinha de ficar com Simeneau e ir morar na casa de uma tia dele, que precisava de uma pessoa de confiança. Teria a herança também. Gabin preferia Simeneau ao outro. Achara que o outro fizera bem em morrer.
Voltou para a rua, não estava sofrendo demais, chegando a sorrir vendo sua sombra no sol. Lembrou-se dos tédios da mulher no lugar onde viviam, bem como suas impaciências. Mostrara-se bondosa. Mas nunca fora seu amante, ela chorara por um irmão, sentia. Porque atrapalhar de novo sua vida? Morto não tem ciúmes. Imaginava-a festejava e amada, numa cidadezinha, morrera e não seria cruel de ressuscitar.
Agora viajava muito, vivendo um pouco por toda a parte, um homem medíocre, vivendo e comendo como todo mundo. A morte não dava mais medo, mas agora parecia não o querer, agora que não tinha razão para viver. Temia que ela o esquecesse.
Olivier Bécaille perdeu a vida. Tudo que tinha antes não lhe há mais, sendo apenas um homem medíocre, antigamente temendo a morte, agora sente que ela não mais o quer, sendo alguém que apenas se sente vivo fisiologicamente. Tendo morte no título, apesar do protagonista ter apenas tido por pouco mais de um dia as características de um morto, vemos que ele morreu como aquele que existia. A história tendo esta característica dupla, uma aparente morte real culminando na destruição social de um ser, faz disto algo filosoficamente bastante rico, na perspectiva de que a vida pode parecer morta para alguns, com o ser em pleno funcionamento. O rígido realismo naturalista de Zola, não tendo o possível absurdo de Brás Cubas, que lhe permite uma mais ampla interpretação da vida, com novas possibilidades, aqui torna-se necessário ver o que se torna o vivo após parecer morto.