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Pedro Fagundes de Borba

Autor: Pedro Fagundes de Borba

Por trinta e cinco anos

3/5/2020 - Várzea Paulista - SP

 Algumas pessoas conseguem bagunçar tanto as ideias e as noções do que se entende por gente que se tornam fascinantes, muitas vezes inspirando personagens, literatura e às vezes até estudos psicológicos, chegando mesmo a ter personagens fictícios que inspiram noções clínicas da mente humana. O personagem do conto “Alexandre”, de Guy de Maupassant, não foi de tal forma influente, mas consegue reproduzir alguns jeitos e características individuais da maneira literária mais forte, servindo, dentro das possíveis medidas, como representação do ser assim.

  Todo dia Alexandre conduzia a cadeira de rodas até a porta da pequena residência do casal Maramballe e levava sua velha e imponente patroa para passear, por ordens médicas. Colocou o veículo no degrau, por onde podia fazer subir a gorda senhora, entrou e escutou uma furiosa, enrouquecida voz de soldado vinda de seu patrão, Joseph Maramballe, ex-capitão de infantaria aposentado.

  Vieram então ruídos violentos, e nada mais por alguns instantes. Alexandre reapareceu na soleira da porta, segurando a senhora extenuada pela descida da escada. Não sem esforço, a pôs na cadeira de rodas. Com a barra para empurrar o veículo, seguiu na direção do rio. Todos os dias atravessavam a cidade assim, em meio a cumprimentos respeitosos para ambos. Ela era amada e ele considerado o modelo dos empregados. O sol de julho caiu brutalmente sobre a rua, inundando com sua luz triste, extremamente forte e ardente.

   Apressava o passo, afim de chegar mais rápido à avenida que levava ao rio. Ela dormitava sobre sua sombrinha branca que às vezes se apoiava no rosto impassível dele. Quando chegaram na alameda, despertou sob a sombra das árvores e disse para ir mais devagar, assim ia matá-la com aquele calor. Não pensou, egoísmo ingênuo seu, que queria ir mais devagar por ter ganho o abrigo das folhas. Após longos saboreios dos lugares, quis ir embora, ele não estava muito bem comportado aquele dia. Respondeu que realmente para ela.

   Estava a serviço da família a 35 anos, resultando uma espécie de familiaridade com a velha senhora, afetuosa para ela, deferente para ele. Falavam dos negócios da casa como se faz entre iguais. Principalmente o mau gênio do capitão, amargurado por longa carreira debutada com brilho, corrida sem avanços e terminada sem glória. Dizia que fora muito mal educado, principalmente quando deixara o serviço. Alexandre completou dizendo que acontecia todos os dias e mesmo antes dele deixar o exército. Disse que era verdade, mas não teve sorte. Fora condecorado aos vinte anos e até os cinquenta não passou de capitão, esperando se tornar pelo menos coronel. Respondeu que, se não tivesse sido suave como um coice, os chefes o teriam amado e protegido mais. Era preciso agradar as pessoas para ser querido. Tratá-los daquela maneira era culpa deles, pois os agradava tê-los por perto, mas com os outros era diferente. Refletia sobre como se enganara com ele. Pediu para parar e repousar no banco.

  Senhora Maramballe comentou que o desposara, tinha de suportar suas injustiças, mas o que não compreendia era porque ele também tinha. Respondeu algumas palavras soltas. Ela lembrou que ele fora seu ordenança e tinha de suportá-lo à época, mas agora. Poderia ter saído dali onde o tratavam e pagavam mal, casado e constituído família. Tinha recebido educação. Conseguiu falar que era de sua natureza. Quando se apegava, se apegava e estava terminado. Ela duvidou que o comportamento e a doçura do marido o prenderam por toda a vida.

  Resmungou entre os longos pelos do bigode que não por ele, mas por ela. Quis entender. Lembrou que, quando levar uma carta do tenente para ela, ela lhe deu vinte soldos e um sorriso, ficando tudo decidido. Com ela não entendendo bem, quis mais explicações. Respondeu que teve um sentimento por ela. Fora isso. Maramballe teve vontade de chorar pensando na renúncia que ele fizera para permanecer a seu lado. Disse para voltarem.

  Se aproximando da cidade, perceberam o capitão Maramballe vindo em sua direção. Falou com ela em visível desejo de se irritar. Perguntou o que teria para jantar. Frango e feijão branco ela respondeu. Ele se encolerizou. Não querendo, ela respondeu que era o melhor para seu estômago.  Se exasperou diante de Alexandre, dizendo ser culpa dele ter o estômago doente, a 35 anos o envenenava com sua comida suja.

 Ela então se virou para observar o velho empregado. Os olhos se encontraram e ambos disseram no único olhar: obrigado.

 Sua vontade de ali permanecer, o apego que nutre, além de um mal explicado sentimento pela Maramballe, o resumem enquanto ser social e enquanto eu, parte inteligível e consciente da vida. É um empregado, com fortes características psicológicas para isto, servindo assim enquanto vivo. Sua dedicação, seu jeito de agir, associado com todas as suas particularidades e características de empregado subalterno, inconscientemente, pelo menos, sabendo não poder escapar daquela condição, também, sabendo e explorando, seus modos de ser, sabedorias da vida perante o que tem de passar, as coisas únicas que consegue ver dali, ao mesmo tempo seu consolo e entendimento da vida, lhe dando capacidade de entender outras coisas, desconhecidas de muitos privilegiados, ainda que em benefício deles. Maupassant captou um pequeno ser, num microcosmo de uma realidade grande.

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