Autor: Pedro Fagundes de Borba
Estando dentro da vida, é preciso conhecer o que o nosso corpo, o que está dentro dele também, é capaz, quanto espaço ocupa, quanto e como pode ocupar. Por mais que se possa questionar a posição, o poder e o valor dos indivíduos, muitas vezes pendendo para conclusões certas, ao mesmo tempo cada um precisa entender como está, o que conseguirá. E entre isso, ver como podemos ser, o que ideias e atitudes impactam. O filosofo iluminista exilado grande quantidade de vezes em vida, Voltaire, explorou diversos indivíduos, normalmente associados a alguma filosofia, como elas poderiam funcionar se aplicadas. No caso de “Memnon ou a sensatez humana”, explorou a sensatez, do que resulta sua completa adesão.
Memnon havia concebido o projeto insano de ser completamente sensato. Uma loucura que já passou pelo menos uma vez na cabeça da maioria dos homens. Disse para si mesmo que bastava não ter paixões. Para isto, não amaria mulheres e estaria sempre sóbrio, bastando imaginar o que aconteceria depois para se motivar. Tomaria cuidado com o dinheiro. Tinha amigos, iria conservá-los.
Após as resoluções, foi à janela. Viu duas mulheres passando, uma velha que parecia não pensar em nada e uma jovem que aparentava estar muito preocupada. Tornava-se graciosa por suspirar e chorar. O sábio ficou tocado pela aflição que a consumia, jamais pela beleza da jovem. Desceu e a abordou para consolá-la com sensatez. Contou sobre um tio que não tinha que com tais artifícios arrancara um bem que não possuía, e o que tinha a temer de sua violência. Disse-lhe que parecia muito bom conselheiro. Se fosse até sua casa examinar seus negócios estava certa de que a tiraria dos cruéis apuros em que se encontrava. Seguia-a, para examinar os negócios com sensatez.
Em um quarto perfumado, o convidou para sentar em um amplo sofá. Ela falou baixando os olhos, por vezes escapando lágrimas que, se erguendo, encontravam os olhos de Memnon. As palavras eram cheias de ternura que aumentavam cada vez que se viam. Memnon levava o caso a sério e cada vez mais sentia vontade de ajudar uma pessoa tão honesta e infeliz. No calor da conversa, deixaram de estar um diante do outro, insensivelmente. Aconselhou tão de perto que já não conseguiam falar de negócios, não sabiam em qual parte da conversa tinham parado.
Chegou o tio armado dos pés à cabeça, dizendo que ia matar a sobrinha e Memnon, mas podia perdoar em troca de muito dinheiro. Ele foi obrigado a dar tudo que tinha.
Voltando para casa, encontrou um bilhete que convidava para jantar com alguns amigos íntimos. Se ficasse sozinho, não conseguiria tirar a triste aventura da cabeça, adoeceria. Vai, o percebem aflito. Fazem com que beba, para dissipar sua tristeza. Achou que um copo de vinho faria bem, e embriaga-se. Propõem um jogo após que refeição, que Memnon joga e perde seu dinheiro. Inicia-se briga por causa do jogo, todos se inflamam, ele perde um olho. É levado para casa.
Passada a embriaguez, pede ao criado que busque dinheiro junto ao recebedor geral das finanças, para pagar o que deve aos amigos íntimos. Foi informado que seu devedor cometera falência fraudulenta, alarmando muita gente. Vai ao rei pedir justiça contra o falido. Após encontrar damas em um salão, uma das, conhecida, lhe perguntar porque perdera o olho sem ter resposta, se atira aos pés do monarca. Beija três vezes o chão. Passa para um sátrapas, que o leva para um canto. Acha engraçado não ter falado com ele antes e mais ainda que viesse pedir justiça contra um honesto homem falido que tinha sua proteção por ser sobrinho de uma camareira de sua amante. Se quisesse conservar o olho que ainda tinha, devia esquecer o caso.
Com tudo que aconteceu após suas renúncias. Vai embora, a noite na alma. Quer ir para casa, ali encontra meirinhos que retiram os móveis a pedido de seus credores. Cai sob um plátano, encontrando a dama da manhã, passeando com seu querido tio e explode em gargalhada ao ver Memnon. Deita-se sob a palha de sua casa, ardendo em febre. Adormece com a crise, um espírito celeste lhe aparece em sonho.
Resplandecia de luz, tinha seis belas asas, não se parecia com nada. Pergunta quem é. Responde que seu anjo da guarda. Quis o que tinha perdido, contando como perdera. Disse que eram aventuras que nunca aconteciam em seu mundo, explicando pouco depois que porque lá não haviam mulheres, comida, ouro ou corpos. Quis saber com que passavam o tempo então. Respondeu que velando os globos que lhes foram confiados, e vinha consolá-lo. Quis saber porque não viera na noite passada. Estava com seu irmão mais velho, Assan. Um ser de estado ainda mais deplorável que o de Memnon. Mandaram furar seus olhos por pequena indiscrição e agora estava num calabouço, mãos e pés no ferro. Não entendeu porque ter anjo da guarda na família se um estava caolho na palha, o outro cego e na prisão. Sua sorte mudaria, prometeu. Seria sempre caolho, mas não devia mais conceber o projeto estúpido de ser completamente sensato. Quis saber se o intento era impossível. Tão impossível, respondeu, quanto ser completamente hábil, forte, poderoso ou feliz. Haviam bilhões de mundos dispersos no espaço onde eram, em ordem, um menos sábio e prazeroso que o outro. Memnon achou que a terra era um dos últimos. O anjo respondeu que quase, tudo tinha de estar em seu devido lugar. Perguntou então se certos poetas e filósofos estavam errados em afirmar que tudo está correto. Ouviu que estavam certos, considerando a organização do universo. Respondeu que só acreditaria naquilo quando não fosse mais caolho.
Expondo uma desastrosa trajetória, Voltaire mostra o que ocorre quando se decide ser completamente sensato, a condição e características mentais de quem está nesta ideia. Memnon, absorto nesta, se repudiou com a aparente insensatez de não pagar os amigos íntimos ou ajudar a moça. Querendo ser completamente sensato, encarou a estupidez de sua ideia, fazendo-se perder o que tinha. Na ordem explicada pelo anjo, acreditou que o mundo continuava errado, sem nada de certo, um dos últimos na lista dos sábios e prazerosos. A sorte não mudaria, como não deixaria de ser caolho. Sensatamente, não via nada de certo.