Autor: Pedro Fagundes de Borba
A poesia mexe com o mundo. Tendo raízes na mesma obscuridade, no mesmo absurdo plausível das artes, uma forma desta e a base de toda, caindo sempre nos mais amplos caminhos e mistérios daquilo que os seres humanos entendem. Atinge de maneira muito distinta cada um que disto se aproximam, os maus poetas sendo os mais ricos e vastos para os escritores verem e representarem. O sofrimento do mau poeta e sua tentativa de representar o mundo, serem algo que não atinge, baseado no que se conhece, algo vasto demais para ser compreendido pelos literários. Uma das grandes almas literárias recentemente falecidas, o latino americano nascido no Chile Roberto Bolaño, fez sua representação de um assim, no conto “Enrique Martí”, integrante do livro “Chamadas telefônicas”. Dedicou para seu amigo Enrique Vila-Matas.
O poeta do título, Enrique Martí, se tornou amigo do narrador Arturo Belano quando este se mudou para Barcelona. Tinha a mesma idade; Martí escrevia em castelhano e catalão. Tinha Miguel Hernández como principal referência, Belano especula que por falar da dor, os maus poetas sofrem muito. Escrevia mal. A tenacidade em ser poeta lhe dava uma auréola de simpatia. Seu primeiro passo foi lançar uma revista, onde ele e Arturo publicariam poemas. Na última hora, os amigos de Enrique decidiram não incluir os dele. Conturbou por um tempo a amizade. Enrique Martí culpava outro chileno, que teria afirmado ser demais dois chilenos numa fanzine espanhola. Lavou as mãos e se desinteressou do projeto.
Pararam de se ver. Sabia o que acontecia por conhecidos em comum na Cidade Velha. A revista, Soga Blanca, não passou do primeiro número. E Martí fora corrido de um teatro ao tentar montar uma peça num ateneu.
Foi para sua casa, uma noite, com uma pasta cheia de poemas embaixo do braço. Queria que ele lesse. Leu alguns, compreendeu que, se dissesse que eram ruins, não o veria mais, além de ocasionar discussão. Chegou a elogiar um. Sabia que ele seguia Sanguinetti. Quando falou sobre sua revista morta no primeiro número, viu que ele sabia sua opinião, mas sobre isto se calava. Falaram sobre Sanguinetti e Frank O`Hara. Ficou um ou dois anos sem vê-lo.
Estava em um conturbado relacionamento com uma mexicana quando se reviram. Depois foi chamado para jantar em sua casa, conhecer a companheira. O recebeu de maneira cínica, irônica, talvez apenas farta. Foram até cinco jantares. Morava ele agora numa cobertura no bairro Gracia, cheio de livros, quadros e discos. Contou que não escrevia mais poesia. A mexicana ficou condoída com a renúncia. Predisse um retorno que a companheira de Enrique concordou noventa e nove por cento. Achavam mais poético que ele se dedicasse ao trabalho. Arturo Belano não externou qualquer opinião. As conversas rumaram sobre o desejo de ter filhos. Belano contou ser o único da mesa que tem filhos.
No último jantar, a relação com a mexicana já em prorrogação, Enrique Martí falou sobre uma revista para a qual colaboravam. Ele e a mexicana, raramente acontecia, concordaram com algo. Era uma revista de banca de jornal, que falam de óvnis a fantasmas, culturas pré-colombianas desconhecidas, aparições marianas. Chamava-se Preguntas y Respuetas. Crê que ainda é vendida. Quis saber do que falavam. Enrique contou que, nos fins de semana, iam para onde tivesse avistamento de discos voadores, entrevistavam as pessoas, sacavam a câmera fotográfica e ficavam de vigília. Leu alguns artigos. Mal redigidos, toscos e pretensamente científicos. Percebeu que não se importavam com sua opinião. Ele e a mexicana não paravam de rir.
Por muito tempo não soube nada dele. Morava nos arredores de um vilarejo onde, diariamente, ia pegar correspondência. Um dia apareceu uma diferente, que não era propriamente uma carta. Convidava para um coquetel do lançamento do primeiro romance de Arturo Belano, ao qual ele não esteve presente. Encontrou alguns planos rudimentares em forma de números. Não trazia assinatura. Obviamente, o anônimo havia estado no coquetel. Soube que era de Enrique durante a noite, enquanto preparava o jantar. Imaginou as cenas.
Na semana seguinte, recebeu outra carta anônima. Outro convite para o lançamento do livro. Sob o nome dele, transcreveu um verso de Miguel Hernández falando sobre felicidade e trabalho. Observando outros aspectos concluiu e percebeu ser a continuação da outra. Encontrou um dia na banca um exemplar de Preguentas y Respuestas, folheou, não comprou. Não via o nome de Enrique nela.
Uma noite, um carro parou em frente sua casa. Foi ver, sem saber quantos havia dentro. Era Enrique Martí. Perguntou se recebera as cartas. Todas as perguntas relacionadas eram sim. Disse que tinha problemas. Entraram. Falou que esteve no lançamento do romance, achando que ele iria. Arturo reparou que trazia algo debaixo do braço. Quis saber o que era. Nada, respondeu Enrique. Não queria que lesse, apenas guardasse. Perguntou como sabia onde ele morava. Citou o nome de um amigo comum, o chileno que achou dois chilenos demais para a primeira Soga Blanca. Manteve embrulhado.
Continuou sabendo de Enrique pelo chileno. Soube que mantinha uma livraria no bairro de Gracia, perto do apartamento que visitara com a mexicana. Estava separado, não contribuía mais para a Preguentas y Respuestas, sua ex-mulher trabalhando com ele na livraria. Recebeu uma carta dele assinada, dizendo que estivera no Congresso Mundial de Escritores de Ficção Científica. Não escrevia sobre, estava enviado das Preguentas y Respuestas. A notícia seguinte foi dada pelo chileno.
Havia duas semanas, Enrique havia morrido. Foi encontrado pela ex-companheira enforcado na viga do quarto, morava na livraria. Ela quase teve um ataque cardíaco e foi esperar na calçada. Voltou, ao contrário do que esperava, ainda estava na viga. Policiais fizeram perguntas, fotografaram os números. Achou que representava dívidas acumuladas. Todas as portas, nenhum sinal de arrombamento.
Ficou pensando sobre a morte dele, foi à Barcelona tentar descobrir por que, trocando informações com outros conhecidos dele. Só divergiram quanto à colaboração para a Preguentas Y Respuestas, alguns dizendo que não colaborava há muito tempo. Foi na redação, o diretor não sabia da morte. Disse que ele não estava colaborando sobre a revista. Perguntou se havia enviado alguém para cobrir o Congresso. Também não. Conseguiu o telefone da ex-companheira. Falaram nada específico, se reconheceram, falaram sobre alguns pontos da vida. As moedas acabaram. Na noite anterior à saída da casa, abriu o embrulho de Enrique. Cinquenta folhas, todos poemas. Não conseguiu dormir. Agora era sua vez de fugir.
Enrique Martí conhecia os efeitos da poesia, aqueles destinados aos que não alcançam a compreensão poética, o contato com tal força que, surgido naturalmente pra uns, parece apenas atormentar e atrapalhar outros. Martí foi assim. Passou sua vida, viveu muitas consequências dos maus poetas e não aguentou no final, por motivos densos, talvez não poéticos ou relacionados com poemas. Dentre esta força que gera poesia, e possivelmente outras artes, o máximo que se entende disto, muitas andanças podem acontecer, algumas afastadas, levando à vida algumas de suas formas mais estranhas, mais incompreensíveis.