Autor: Pedro Fagundes de Borba
Os sentimentos são da vida. Estão dentro dela, provavelmente indo depois. Fazem todo o sentir, o se conectar com aqui. Sempre repletos de emoções e irracionalidades, refletem as pessoas. O vivo circula através deles, a natureza sempre tem papel fundamental através desta característica. Mesmo negando a importância deles, só se entende isto sentindo. Tudo que nos cerca passa pelo sentir, dando as últimas conclusões por isto. Murilo Rubião, em seu conto “Petúnia”, fez bem a história.
Gostavam do jardim, seus pássaros, cavalos marinhos e as filhas, três louras Petúnias enterradas na última primavera: Petúnia Maria, Petúnia Angélica e Petúnia Jandira. Quando dos pequeninos túmulos colocados à beira da estrada saíram pequeninos titeus, nada mais pertencia a Éolo. Cacilda havia se assenhoreado do talento. Estava proibido de ver os jazigos, o jardim. Tinham aparecido alguns Timóteos, flores alegres, divertiam as miúdas Petúnias, ensinando dança, despindo as pétalas. Aborrecia Cacilda. Éolo aguardava as begônias, ausentes naquele ano.
Esperava triste, por andar sozinho no quarto úmido. Imaginava, amargamente, impedida a vista pelas janelas franqueadas com pregos a mando de Cacilda, os bailados dos Timóteos, a alegria das louras Petúnias. Indagava porque Petúnia- mãe as julgava mortas se nada apodrecera. Com a primeira, Petúnia Maria, filha de Petúnia Joana, imaginou que os dias seriam felizes.
Chamo-me Cacilda, nenhuma se chamava Petúnia, gritou a mulher( o amor perdeu de encontro à vidraça).
Petúnia Jandira adorava histórias.
Porque Begônias?
Não tinha plano de casamento; sua mãe pensava de outro modo. Era rica e só tinha ele. Não admitia que sua fortuna fosse para a mão do estado. Queria que ficasse com os netos. Vendo que não conseguia mudar as convicções do filho, descaía para a pieguice: quem cuidaria do Eolinho? Enfurecido, ia para o quarto.
Sua mãe Mineides regularmente fazia festinhas para encher de moças, esperançosa de conseguir. Quando diante das, na sua opinião, com melhores qualidades, aparentava uma infelicidade fingida, concordada pelas jovens, felizes em se tornar cúmplice da velha. Éolo bocejava. Ou se irritava com os gritinhos histéricos, perguntas idiotas ou a admiração das mocinhas pelo casarão, onde o mau gosto predominava. Esperava o recinto esvaziar, enfastiado. Quando terminava, Mineides e os criados nos aposentos, os pássaros invadiam a sala, voavam pelo lustre. Não cantavam. Rufavam de leve as asas, para os outros não os virem em seus voos noturnos.
Uma tarde, estando a brincar com bolhas de sabão ouviu a mãe berrar que viesse. Relutante, foi. O aguardava impaciente. Pressentindo seus passos no corredor, arrastou uma moça em sua direção, que pouco á vontade a acompanhava. De ordinário, mostrava-se seguro e indiferente na frente das mulheres. Ficou a contemplar os olhos, lábios e cabelos. Tomou-a nos braços, vagaroso. Apertou suavemente, depois estreitou. Esqueceu da mãe. Elogiou os pássaros. Quais pássaros, perguntou a mãe. Ignorou. Estava convencido de que amava Petúnia, pois em sua frente estava Petúnia.
A mãe não assistiu o casamento. Antes de morrer, manifestou o desejo de que seu retrato fosse transferido para o quarto que iria abrigar o casal. Sabendo os motivos, Éolo hesitou em dar sua aquiescência; Petúnia se apressou em concordar. Os dias eram tranquilos, casa repleta de pássaros e cavalos marinhos, até o nascimento da terceira filha nenhum atrito criara desarmonia entre os dois.
Alguns dias após o último quarto, Petúnia acordou horrorizada. A maquiagem de Mineides estava se desfazendo no retrato, com batom e cosméticos retocaram. Ele acordado resmungando. O sorriso mostrava satisfação pelo feito quando pronto. Petúnia fez cara de nojo e virou para o canto. Custou a voltar no sono. Mesmo tentando esquecer, tinha o pensamento voltado para o retrato da sogra, derretendo, sujando a moldura e o assoalho. Seu desespero aumentou com a repetição do fato nas noites seguintes. Pediu ao esposo que retirasse. Fingia de desentendido, sempre recompondo a figura. Uma noite se descontrolou, como era possível amar com aquela bruxa no quarto. As relações tornaram-se frias, sem que deixassem de ocupar a mesma cama. Quase não se falavam, os corpos distantes quase nunca se tocando. Cacilda lhe dava as costas e, entediada, lia um livro qualquer. Descuidava também as filhas, e muitas vezes as evitava.
Vindo da cidade, entrando em casa, sentiu as pernas afrouxarem, a náusea chegar à boca. As três Petúnias jaziam inertes, estranguladas. Deu alguns passos, cambaleante. Retrocedeu apoiando-se na parede. Superou a imensa fadiga e pôde observar melhor as filhas. Tentou reanimá-las, sem conseguir. Percebendo a inutilidade, rompeu num pranto compulsivo. Não entendia porque alguém teria feito aquilo. Tudo se aclarou e foi atrás de Cacilda, que encontrou na cama, sentada, segurando a cabeça nas mãos. Inquirida, levantou os olhos secos para o marido e disse que fora a megera. Mostrou o retrato da velha, a se desmanchar na parede.
Perdera a noção de quantas horas havia dormido. Acordou pensando nas Petúnias. Não as achou no mesmo lugar. Vasculhou tudo. Nem sinal nem de Cacilda ou das filhas. Foi para o jardim, achando que estariam lá. Não transpôs a porta, impedido pelos cavalos marinhos. Cobriram o rosto e as pernas, ele os afastando e fugindo. Cacilda retornou tarde. Não deu explicações. Se habituou às fugas da esposa. Não dirigiam palavras. Por muito tempo ficou ele em casa, por medo da fúria dos cavalos marinhos. Ao descobrir que eles e Cacilda tinham sonos muito profundos, recuperou a alegria. Conseguiu ir para o pátio sem ser molestado, acreditando que faria aquilo sempre.
Desenterrava as filhas e levava para um canteiro de açucenas. Desvencilhavam-se de suas mãos e davam os primeiros passos. Dançavam durante a madrugada, titeus e proteus acompanhando. Uma noite, descuidado, descobriu demais o lençol que cobria a esposa e viu seu ventre. Tinha uma flor negra e viscosa, recém desabrochada. Cortou pela haste com uma faca trazida da cozinha. Caminhava sem precaução, esbarrando nas portas, tropeçando nos degraus. Manteve seus hábitos. Apenas não prestou mais atenção aos bailados nem limpava cuidadosamente as Petúnias. Durante as noites seguintes, sempre encontrava a rosa escura presa na pele de sua mulher. Não cortava. Arrancava com violência e desfazia entre os dedos. Descia ao jardim para cumprir o ritual que se acostumara, nervoso.
Contra sua vontade, não conseguia abandonar o leito da esposa sem descobrir o corpo, muito menos desviar os olhos da flor. Com a impossibilidade de se livrar daquela presença obcecante, pegou a faca com que cortou a flor pela primeira vez e enterrou em Cacilda.
O olhar fixo no busto da morta, a contemplava sem a avidez de anos atrás. Voltou-se, por instantes, para os lábios, que não tinham a sensualidade de antigamente. Recompôs a pintura e sentou na cama. O sangue escorria da ferida enquanto as flores brotavam. Levou para o quintal, cavou um buraco no canteiro de couves e jogou o corpo. Mal cobriu, surgiram pétalas viscosas e pretas. Lembrou-se das filhas. Correu para desenterrá-las. Extenuado, mas aguardou terminarem a dança para subir ao quarto. Sem se despir, caiu na cama e dormiu imediatamente. Não dormiu muito, acordado pelos estalidos do assoalho. Sobressaltado, viu o aposento atapetado de rosas negras. Urgia destruí-las, medo de que se espalhassem, levassem a prova do crime. Alarmou-se com a possibilidade de ser encarcerado. Quem iria cuidar do retrato da mãe, retirar da terra as Petúnias?
Não dorme. Seus dias, sabe, serão consumidos por desenterrar as filhas, retocar o quadro, arrancar as flores. O rosto é alargado de suor, o corpo é dolorido, olhos vermelhos, quase queimando. O sono é quase invencível, mas prossegue.
Sentia muito aquelas Petúnias, as três. Seus sentimentos se concentravam todos nelas, provavelmente faltando em muitas outras coisas. Carregava respeitosamente o peso de Mineides, Cacilda concordou, levando junto. Ficou-se naquela casa, o quadro intervindo. A flor foi forte, ativou seus sentidos. E cuidou dos corpos das Petúnias. Passou sentindo tudo, agora sem dormir, fazendo tudo que ocorreu e cristalizou. Atmosfera de flores.