Autor: Pedro Fagundes de Borba
As sensações da vida revelam muito. Cobrem vastos espaços de quem às sente, alguns possivelmente inalcançáveis de outra forma. São extremamente poderosas, quando envolvem desejos mais ainda. Parecem ser odiadas coletivamente, mesmo individualmente em algumas pessoas. O tempo em que não é sentida a distorce, lhe dando novos contornos e adulterando a visão que tínhamos dela. Quanto mais tempo passa, mais vaga ou diferente parece daquilo que sentimos. Pode-se até mesmo achar que não são reais. Inácio, protagonista do conto de Machado de Assis "Uns braços", passou por isso em sua vida.
Aconteceu quando tinha quinze anos. O pai, barbeiro na cidade nova, o tinha pô-lo de escrevente do solicitador Borges, com esperança de vê-lo no foro. Apesar de não ser mau, Borges era extremamente ríspido, agressivo e rabugento. Reclamava, principalmente à hora das refeições, dos serviços do menino, um desastrado, sempre trocando papéis, cartórios, advogados e outros erros. Iria contar tudo ao pai, para que o endireitasse. Maritalmente com ele vivia Severina, moça de vinte e sete anos, não era bonita, mas não era feia. Tinha braços belos e cheios os quais trazia descobertos, não por faceirice, mas por já ter gasto as mangas dos vestidos da casa. Borges costumava reclamar dos serviços durante as refeições com a mulher e o aprendiz. Inácio tinha neste momento as horas mais agradáveis do dia, por ver os braços de Severina, e a dona. Aguentava as grosserias e os trabalhos por estes momentos, não indo embora por isso.
Numa noite, Severina ficou recapitulando um episódio ocorrido no jantar, onde ele ficava ao redor olhando com cara de devaneios. Pela primeira vez, suspeitou alguma coisa. Logo afastou. Uma criança. Mas era uma das ideias que se sacodem, elas voltam e pousam. Criança? Tinha quinze anos. Percebia um ranho de buço entre o nariz e a boca do rapaz. Não admirava que começasse a amar? E não era ela bonita? A ideia não foi rejeitada, mas afagada e beijada. Recordou sobre ele; o solicitador entrou no quarto e perguntou o que tinha. Não tinha nada, ela respondeu. Saiu zangado, fazendo ameças que não tinha condições de cumprir, por não ser mau. A ela, tudo parecia que era verdade, com uma complicação moral que ela só conheceu pelos efeitos. Começou nos dias que se seguiram, tratar Inácio com aspereza. Depois de outros com benignidade, sendo mesmo cuidadosa.
Inácio, que muito pensava ir embora, estava com a agitação crescendo. Tanto errava mais os trabalhos quanto via Severina em vários mais lugares. Num domingo estava só no quarto, olhando para o mar. Estar ali ou ler folhetos era parte de sua rotina dos domingos. Lia "A princesa Megalona". Via Severina nas personagens. Caiu no sono.
Via ele ali. Sentia o coração bater veementemente. Sonhara com ele à noite. Podia ser que também estivesse sonhando com ela. A figura dele lhe aparecia como uma tentação diabólica. A ideia de criança lhe dissipava a turvação dos sentidos. Cansou de olhar e mirou-o lentamente. O achava bonito, mais bonito que quando acordado, embora ainda visse criança. Uma ideia corrigia ou corrompia a outra. Beijou-lhe a boca; no exato momento em que o sonho coincidia com a realidade, sendo beijada por Inácio no sonho dele. Recuou assustada.
Tinha medo de que fingisse dormir. Mas continuou ele dormindo até a hora do jantar. A rispidez do solicitador e a severidade de Severina, características dos outros dias, não lhe dissiparam a vista graciosa nem amorteceram a sensação do beijo. Sequer reparou no xale cobrindo os braços de Severina. Borges, no sábado, mandou dizer ao pai que não podia mais ficar com ele. Tratou o garoto bem e disse-lhe à saída que quando precisasse podia procurá-lo. Quando saiu, Severina estava no quarto, com dor de cabeça. Podia vir se despedir no dia seguinte ou no outro, disse Borges. Não entendia nada, principalmente a mudança de Dona Severina. Supôs algum olhar indiscreto. Não era outra coisa.
Levava o sabor do sonho. Ao passar dos anos, em amores mais efetivos e longos, nenhuma sensação igual à daquele domingo achou. Às vezes exclamava sem saber que se enganava: e foi um sonho.
Pode-se passar o tempo todo sem sentir a vida. Grande maioria das pessoas vive assim. Outras, mesmo, odeiam viver, repugnando as sensações mais profundas, chegando ao cúmulo de terem-lhe medo. Inácio sentiu, com uma força muito maior do que geralmente acontece. Não repugnou, nem mesmo, sequer, deixou de perceber, mas a considerou fruto de um sonho, principalmente por não ter visto com olhos acordados o momento em que aconteceu. Continuou vivendo, com aquilo lembrado, não entendendo o que era aquilo, como surgiu, sua formação profunda, Achava que era um sonho, um devaneio da cabeça em busca de um lugar melhor. Sentiu sonhando.