Autor: Pedro Fagundes de Borba
A infâmia, das piores coisas que existem, é muito complexa. Tem uma imensa capacidade de destruição e, principalmente, dominação, subjugação. Boa parte deste poder vem das complexidades de composição e também de sua aparente necessidade para acontecer nos momentos em que se manifesta. Um dos autores que mais fundo compreendeu a existência, a vida e o que compõe as visões e impressões humanas, Jorge Luis Borges,falou sobre a infâmia em seu livro "História universal da infâmia" descrevendo-a em situações e personagens, fazendo um completo todo. O que irei comentar agora é "Viúva Ching, pirata", onde a volatilidade do ocorrido é bastante maior.
Após comentar rapidamente sobre Anne Bonney e Mary Read, começa a falar sobre Ching, aguerrida de vida mais longa e venturosa. Em 1797, Ching foi nomeado almirante do consórcio formado por várias esquadrias piráticas. Severo e exemplar no saque das costas, fez com que seus habitantes implorassem socorro imperial. O governo mandou que queimassem a aldeia, esquecessem os afazeres de pesca e fossem pra dentro da terra, praticar agricultura. Os invasores não encontraram senão costas vazias e tiveram de assaltar navios, o que prejudicou seriamente os comércios. O governo então mandou que os habitantes reconstruíssem os remos e redes. Amotinaram-se, fiéis ao antigo temor; as autoridades optaram por por nomear Ching chefe dos estábulos imperiais, ele ia ceder ao suborno. Os acionistas souberam a tempo e a indignação se manifestou em forma de erucas envenenadas. O chefe cedeu, com elas, às divindades do mar.
Transfigurada pela dupla traição, a viúva reuniu os piratas e instou para que recusassem a enganosa clemência do imperador e o ingrato serviço dos acionistas. Propôs a pilhagem por conta própria e a eleição de um novo almirante. Foi à escolhida. Sob suas tranquilas ordens, se lançaram ao perigo e ao mar alto.
Eram compostos por seis esquadrilhas, com bandeiras de diversas cores. Seu regulamento, escrito pela viúva Ching, era de inapelável severidade, de estilo lacônico e justo, prescindidos de flores retóricas. Por exemplo, os bens saqueados deviam ser levados ao depósito; posteriormente, a quinta parte seria do pirata saqueador, ficando o resto no depósito. A violação da ordem era a morte. O pirata que abandonasse seu posto sem permissão especial teria as orelhas perfuradas em público. Com reincidência, a pena seria a morte. O comércio com mulheres arrebatadas das aldeias devia se limitar ao porão, sempre com autorização do encarregado da carga. A violação desta ordem era a morte.
Seu rancho era composto por bolachas, gordas ratazanas e arroz cozido, misturando pólvora com álcool nos dias de combate. Distraíam-se com dados e cartas fraudulentos, cachimbos de ópio, o copo e o retângulo de Fantã, e lamparinas. Usavam espadas como armas principais, besuntavam os corpos e faces com uma infusão de alho, um talismã seguro contra as ofensas das bocas de fogo. A tripulação ia com suas mulheres, o capitão com seu harém de cinco ou seis, geralmente renovadas a cada vitória.
Em 1809, foi baixado um edito imperial do qual se conhece a primeira e a última parte. Começa avisando dos ataques e saques de homens que desprezam o pão, não atendem ao clamor dos cobradores de impostos e dos órfãos, homens cujas roupas interiores tem a fênix e o dragão cravados, não respeitam as verdades dos livros impressos e deixam suas lágrimas correrem para o norte. Ao final recomendaram a Kvo-Lang os castigos. Clemência é um atributo imperial, um súdito não poderia assumir. Devia ser justo, cruel, obedecido, vitorioso.
A referência incidental das embarcações avariadas, falsa, tinha como objetivo principal despertar a coragem de expedição de Kvo-Lang. Encontraram-se um dia os navios da viúva Ching com os do império central. Quase mil navios combateram de sol a sol. Diversos sons acompanharam. As forças do império foram desbaratadas. Nem o perdão nem a crueldade foram usados por Kvo-Lang, que fez um rito geralmente omitido pelos generais derrotados. O suícidio.
Então os seiscentos juncos de guerra e os quarenta mil piratas vitoriosos subiram no Si-Kiang, multiplicando incêndios e festas. Arrasaram aldeias. Uma nova guerra surgiu. A viúva se preparou para a batalha, sabendo que seria muito difícil, as noites e meses de ócio tinham enfraquecido seus homens. Nunca começava. Velavam, os meios dias e sestas eram infinitos. Todos os dias, entretanto, pousavam nas águas e cobertas, leves dragões de papel das esquadras imperiais. Viu que formavam uma história, sobre uma raposa que era protegida por um dragão, mesmo com suas ingratidões e constantes delitos. Um dia, a fábula pareceu ter chegado ao fim, sem saber se houve castigo ou perdão para a raposa. A viúva atirou as espadas e foi até a nave do comando imperial. A raposa obteve perdão e dedicou a prolongada velhice ao contrabando de ópio. Adotou o nome que, traduzido, significa "Brilho da verdadeira instrução". A paz voltou aos mares.
A infâmia percorreu todos os eventos. Os considerando como corsários, é difícil agir sem algo desta maneira. Em momentos, vários, foram eles infames, como reação. A formação da esquadria após o envenenamento do almirante Ching, os ataques governamentais, as regras e dinâmicas dos piratas, a raposa se entregando, a velhice dedicada ao contrabando de ópio todos estes momentos, infames em sua externalidade, tinham suas complexidades e sua realidade, ou seja, concretude e formas suficientes para acontecer, e ocorreram. Em suas camadas mais internas, tinham, entretanto, aspectos e momentos não infames. Com tamanha complexidade e, especialmente, com tamanho embaralhamento de momentos, de ideias e impulsos, é visível um pouco porque é tão presente na condição humana.