Autor: Pedro Fagundes de Borba
De que maneira a sensibilidade pode atrofiar a vida de uma pessoa? Sendo normativamente associada com a amplitude, com a vastidão, com a percepção aguçada de uma grande quantidade de elementos e fatos, vê-se nela, as pessoas não tão sensíveis, a capacidade de grandiosidade, de percepção e mesmo de dominação, em algumas mais insensíveis. Tudo pode ocorrer em contrário, entretanto, percebendo-se de forma muito intensa problemas e condições complexas, o que limita o ser sensível a se prender em problemas dos quais ele não consegue resolver, por mais que queira; o que muito lhe limita a existência, paralisando sua sensibilidade. Marcelle Drouffe, personagem protagonista da primeira novela do livro de Simone de Beauvoir "Quando o espiritual domina", teve uma boa parte de sua vida assim, devido a uma atração.
Desde os dez meses de idade, mostrara-se assim. Quando chorava, fazia por se sentir traída pelo mundo. Assim fazia em muitos lugares, principalmente em igrejas. Passava bastante tempo na biblioteca administrada por sua tia, Srta. Olivier. Lia, devorando, alguns livros e admirava os homens maduros de aspecto elegante que por lá apareciam. Quando adultos cultos e maduros apareciam, sempre ficava próxima deles, não lhe agradando a presença das crianças e seus hábitos. Por sua grande sensibilidade, não ousavam contrariá-la, tendo sido, por isso, educada por uma senhora solteirona. Apenas nos parques de fato havia autoridade, para que fosse brincar.
Lembrava-se ternamente da imagem desta garota que fora. Escrevia contos inocentes, o que admiraria a tia. Sempre se tratava de uma mulher submissa a um homem cruel, como o Barba Azul, que, depois de muito maltráta-la, se amolecia e tornava-se amoroso. Sonhava, sentindo grande calor, antes de dormir, várias noites, com alguma forte imagem erótica. Queria algo mais forte, alguma coisa que satisfizesse o coração exigente. Entediava-se perto dos pais. Na volta de um vesperal dançante, onde ninguém a tirara para dançar, o pai lhe criticara o ar mal humorado, trancou-se no quarto a chorar. Não lhe permitia que sufocasse a alma, diferente das frívolas meninas de lá. Após dores e angústias, percebeu a revelação de seu destino. Seria uma mulher de gênio, talento, murmurou extasiada.
Após ter encontrado e ajudado um interessante tenente que lia nas trincheiras, acabaram se afastando e ela, novamente sofrendo demais, conseguiu um posto como assistente social na rua Ménilmontant, comandada pela senhora Germaine, que se encantou com ela. Sempre se sentia muito triste com o que via e com o mundo. Cerca de um ano depois, dois veteranos de guerra Paul Desroches e Maurice Perdriéres, que queriam reavivar sentidos de camaradagem experimentados na guerra, foram falar com ela para realizar projetos de ensino para a juventude. Sempre se sentia exaltada junto a eles, diferente da presença de Germaine, algo já vampirizante, com a ternura e projeções dela. Jovens começaram a aparecer nos eventos,à grande maioria desinteressada na instrução, querendo apenas camaradagem. Participando ativamente, Marcelle Drouffe reservava grande ternura para eles. Sentia, de noite, a sensação de quem dá e não recebe. Muitas vezes chorava.
Desroches era cristão praticante e possuía uma sensibilidade maior que a de Perdriéres, sendo, por isso, quem se aproximou mais de Marcelle, havendo momentos em que houve grande sensibilidade e afinidades, fazendo-há esquecer um pouco sua sensibilidade, ainda que o coração jamais fosse ficar calmo, sempre muito sensitivo. Em alguns momentos, ficavam mais próximos, consumando algumas dores. Mantinham noivado, Desroches defendendo que a consumação maior devia ocorrer com o matrimônio, pois assim se teria um maior controle sobre a animalidade. Como seguia isso com facilidade, ela se afastou.
Em momentos onde o projeto Contato Social estava começando a ter sua decadência alguns estudantes estavam se encontrando sem poder, menos credibilidade interna e Marcelle querendo sair, surgiu Charval, que falava sobre Rimbaud. Novamente, encantos, em encontros com o grupo, promovidos por ele. Aproximaram-se. A relação com Desroches ficou tensa, ela não o aguentava mais. Estava onírica novamente. Em um momento, ele veio sem consetimento. O falou mal, mas ela entrelaçou-se novamente, ele alegando ser muito tímido. Pensou Marcelle, que o futuro do rapaz seria horrível se alguma mulher não cuidasse dele, da forma como era. Decidiu ela ser sua mulher. O noivado foi rápido e, para realizar desejo da mãe, fez cerimônia oficial. Denis Charval era considerado muito sedutor.
Além da Sra. Druoffe não simpatizar com ele, ao contrário de Pascal e Marguerite, irmãos de Marcelle, continuava preguiçoso, dizendo que poesia não escrevia como a uma tese. Marcelle continuou pagando suas dívidas, mas cada vez mais avisando a situação. Zombava de suas prudências. Mantinha seu jeito. Uma noite, apesar da proibição da mãe e da irmã, Marguerite foi com ele até um american bar. Simultaneamente, Marcelle foi ao quarto dele, encontrou duas ou três linhas de poesia, e cartas.Uma enderaçadade amigo,outra de amante, uma madame.Percebeu então se tratar de alguém ruim de dinheiro que não quis trabalhar, virando amante de mulher rica.
Reclamou com ele sobre o quanto se entregara. Ao ser questionado e respondido que, se aquilo que faziam não lhe dava prazer deviam se separar, Marcelle voltou. Imaginava que podia viver sem esperança e afeto ao lado, mas não sem ele. Não queria ser só. Concluiu o amor superar tudo; continuaram juntos. Ele, agora, sem qualquer restrição. Amargada a cada dia, em um encontrou uma carta de adeus onde, dizendo que lamentaria no futuro a perda do amor, não manteria agora por ser contra o que é. Agia como o rei de Tule, jogando taças de ouro ao mar para se lamentar depois, assim tinha já colocado na carta para o amigo André. Levara dinheiro. Após chorar muito, se alegrou e percebeu ser maior do que aquilo. Iria ir ao grande destino. Novamente, concluiu ser uma mulher de gênio, grande talento.
Embora esteja longe de ser alguém alienada e distante da realidade, pois conscientemente escolhe aquilo que faz, almejando o gênio, possui a sensibilidade que mais a afasta de ser alguém grande do que de fato vira, pois até mesmo nos truques de um malandro problemático como Denis Charval desenvolve a sensibilidade de querer melhorar, ainda que, independente de tudo, ele não irá, o que só aguça mais ainda as sensibilidades, e ela é mulher, o que torna mais inclinada a mirar suas percepções sensíveis nesta causa impossível, em momentos de crise desejando a genialidade. Se torna muito menos vasta do que projeta, por não ultrapassar o que sente. Algo muito característico da condição feminina.