Autor: Pedro Fagundes de Borba
Cyro Martins foi o autor que melhor ilustrou a figura do gaúcho na realidade completa. Se João Simões Lopes Neto foi quem lhe mostrou identidade e filosofia as demonstrando em suas obras, especialmente "Contos gauchescos", Cyro colocou tal força no existente, mantendo alguns traços do célebre regionalista, mas desfazendo alguns traços em torno da figura idealizada, sobretudo a grande força do ser. Em suas obras, gaúcho é ser humano comum, vítima do sistema em que vive e das transformações que o desfavorece. Seu melhor trabalho em torno deste tema é a trilogia do gaúcho a pé, mas ocorreu também em seus contos. "Sem rumo" é um destes.
A história se inicia em um dia bonito de sol e paisagem gaúcha exuberante; temos primeiro Nilo, guri andando em seu pingo douradilho, numa viagem muito comprida, precisando varar o passo, pois ia crescer mais ainda. Depois de atrevessar montado no pingo uma sanga, chegou a casa, após percorrer todo o piquete em busca da bordada. Chamou a mãe dizendo que não encontrou a bordada. Disse ela para campear, o preguiçoso, ou lhe calharia o relho.
Largou o cavalinho de pau, esqueceu os encantos e começou a chorar campo fora. O guri tinha campeado em tudo, nos baixos, nas grotas e até dentro das sangas. Escurecia ligeiro, ele tinha medo da noite. Após mais um pouco de procura, cogita ir até o fogo do seu Paulo. Mesmo sendo longe e quase tarde, foi. Podia ser que tivesse visto a vaca.
Chega de fôlego curto, explica o que a mãe fará se não encontrar a bordada. Paulo disse que pediria que ela não fizesse. Mas faria, devolveu Nilo. Perguntou o senhor se havia dado naco de fumo ao negrinho, da maneira em que um de fé nisto fala, um pouco repressor, para os que não o invocam na hora certa. Tinha a crença desde piazito e aumentara quando perdera Tobiano, pingo de bom valor. Em tanta caminhada, ninguém informava.
No correr dos meses, lembrou do negrinho, ao desesperar de achar e voltava ao rancho. Deixou um naco na beira da estrada, quase envergonhado de não ter se lembrado antes da devoção. Escurecia. Enveredou noite adentro, troteando largo, com pressa de chegar, descansar. Quatro léguas depois ele notou um cavalo, feio, manco e crinudo, mas muito igual de pêlo. Era. Ton foi chamado. Grande alegria. Teria sido o negrinho, perguntou o Nilo. Levou um naco de fumo que deixou mais na frente. Sentia-se pequeno naquela situação. Prosseguia seu caminho.
Havia sons, que Nilo não queria ouvir. Queria simplesmente chegar a casa, se livrar da noite e encorajar-se na luz. Mas a noite era tão grande. Ele tão pequeno. Seus passos não rendiam. E agora estava num chapadão tão comprido. Onde estava a casa? E a luz da janela? Estava com cada vez mais medo; andava de olhos fixos para frente, como se desviando o olhar fosse ver algo fantástico. Mas o que havia? O que o prendia contra o chão? Onde estava a luz da janela? A angústia aumentava. Desatou no choro e correu. Quero-queros gritavam alarmados, uma coruja pousou-lhe na cabeça. Correu mais forte. Não atinava mais sobre a janela. Estafou-se. As pernas amoleceram. Tropeçou. Caiu e ficou estendido no chão úmido, quase sem fôlego, por cansaço e medo. Para fugir da noite, agora, fechou os olhos.
A cultura gaúcha mostrada pelo personagem Blau Nunes na obra Simoniana não está completamente desfeita aqui. Guarda traços e características culturais e, em muitos sentidos, tem visões de vida, bem como da travessia desta, comuns à daquele vaqueano. Nilo almeja ser daquela forma. Enxerga, às vezes imagina, dias e paisagens gauchescas belas. Mas precisa encontrar o douradilho, em um mundo tão grande, podendo apanhar, e sente inferioridade, pequenez, principalmente naquela noite em que acha o pingo. Sua cultura existe só que não é maior do que o mundo, muito menos do que a noite.