Autor: Pedro Fagundes de Borba
A maldade é uma das facetas mais múltiplas e facetadas do ser humano, ou seja, possui grande número de formas e capacidades de aparecer, sendo também um dos aspectos humanos aonde mais se tem presença de paradoxos, na maldade em si e no que a cerca. Caracterizada, essencialmente, como o mau, como a vontade para o mau, para se praticar mau, mostra-se extremamente complexa nos termos filosóficos e mesmo característicos, sendo de tênuidade extrema, não raro desafiando aquilo no qual é conceituada. O contar de uma história aonde se tem a maldade( e seus derivados) torna-se sempre capaz de atrair a atenção ampla, uma vez que muitos aspectos, ideais e interpretações surgem.
Para ilustrar meu pensamento, vou usar a ficção. Mais especificamente, o conto "Cemitério de bonecas" de Nelson Rodrigues, conto integrante da clássica coluna do autor " A vida como ela é". Seu ponto forte, em seus contos, peças, romances e crônicas era demonstrar a fraqueza e mesmo a corrupção moral do indivíduo, muitas vezes impregnado de desejos contraditórios para com aquilo que pregava e queria. Tipo comum em seus personagens. Outro, era um mau-caráter, canalha como diz o autor, que interpreta a bondade para alcançar desejos de maldade, despertando visões de todos os personagens que o cerca. O protagonista do conto de hoje, Dr.Basílio, se encaixa no segundo tipo.
O personagem é um médico apaixonado por crianças, com certo desprezo pelos adultos. Seu comportamento é cordialissímo, no dito correto do superlativo. Seus modos o levam a ser considerado santo pela população, de maneira entusiasta e unânime. Um dia, desiste do emprego que tinha e, na Tijuca, abre um orfanato, apenas para meninas. Trabalha com ele também a diretora, D.Emília. Jornalistas passam a frequentar o local, sempre servidos de boa comida, elogiando Emília, Basílio e a casa. Quando, um dia, sons de lá são ouvidos, a diretora afirma uma menina ter sido picada por um escorpião. Em seu décimo ano de existência, é anunciado, por um jornalista de escandâlo, como uma arapuca, ser D.Emília uma fazedora de anjos. Desgostoso, mordido pela ingratidão humana, Basílio morre de colapso. Durante o velório, na sala principal do educandário, ouvem-se gritos, Emília afirma não ser nada. Quando aparece uma menina de quinze anos, ensanguentada, gritando "Foi ele;Foi ele". Após a garota ser levada para um quarto, outras passam a confirmar que fora Dr.Basílio. O grupo conduzido ao quintal por uma delas, as veem desenterrando caixas com esqueletos frágeis e pequenos, parecidos com bonecas. O último tendo sido enterrado aquele dia. Dr.Basílio era o pai múltiplo e implacável.
Sendo um homem de mau-caráter, pedófilo e abusador, Basílio se intepretou de forma bondosa como sedutor. Carregava em si, características de atração. O aspecto multifacetado de sua maldade manifesta-se dentro de sua loucura, chegando ao ponto de morrer quando descoberto. Sendo a maldade múltipla, o que a desafia aqui não é sua conceituação ou sua filosofia, mas suas características. Sua forma de expressão caracterizada não por um cinismo puro por parte do abusador, mas pela combinação de toda a loucura de seu mau-caratismo com a maneira que enxergava o mundo e os outros, uma visão sincera do mau-caráter, sabendo quem era e abusando. Um mau-caráter completo.